Posts marcados ‘Bíblia’

Como a Peshitta chegou até nós?


Para quem não sabe o que é Peshitta, segue uma breve descrição:
Peshitta é a parte mais antiga da literatura siríaca de todos os tempos, com a provável origem no século I. A maioria das igrejas primitivas confiavam na Septuaginta grega, ou em traduções dela para o “Velho Testamento” e “Novo Testamentos”, quanto a Igreja Siríaca teve seu texto traduzido diretamente do Hebraico. Está versão Siríaca com tradução diretamente do Hebraico chama-se Peshitta.

Gostaria de compartilhar com todos um trabalho sobre a “Bíblia Aramaica perdida de Kerala” feito por KRN Swamy, colunista sobre patrimônio cultural, no Deccan Herald, um conhecido jornal indiano. Este artigo traça a linha de acontecimentos desde os primórdios da fé cristã na Índia, mostrando como a Peshitta siríaca foi preservada milagrosamente da destruição até chegar ao Ocidente no século XIX.

OS MANUSCRITOS ORIENTAIS DA BÍBLIA

1. Bíblia Peshitta
A Bíblia das igrejas siríacas é conhecida como Peshitta. É a versão padrão da Bíblia cristã no siríaco (ou aramaico), língua utilizada em igrejas com herança síria. Enquanto a maior parte da igreja primitiva (ocidental) invocou a Septuaginta Grega, ou traduções a partir dela, no seu Antigo Testamento, as igrejas falantes do siríaco tiveram seu texto traduzido diretamente do hebraico.

O Antigo Testamento da Peshitta foi traduzido do hebraico por volta do primeiro século da Era Cristã. O Novo Testamento da Peshitta tinha-se tornado o padrão até o início do quinto século, substituindo duas primeiras versões siríacas dos Evangelhos.

Em pouco tempo vários livros do Evangelho estavam em circulação. Tatianus, da Assíria, que pregou o Cristianismo na Mesopotâmia utilizando canções em versos, produziu uma versão unificada, em um livro de quatro Evangelhos. Esta versão unificada ficou famosa pelo nome Diatessaron, que significa “harmonia dos quatro”. O Diatessaron foi utilizado como o texto padrão do Evangelho na comunidade cristã Siríaca. Isto foi testemunhado por muitos escritores sírios, como Mar Efraem o Sírio.

Os Atos do Apóstolo Mar Thoma (Tomé) e Atos do Apóstolo Mar Addai (Thiago) foram as outras versões circulantes do Evangelho na história primitiva.
O nome de Rabbula, bispo de Edessa (435 EC) está relacionado com a produção e a substituição do Diatessaron e dos Atos pela Peshitta.
Todas as Igrejas Cristãs Mar Thoma utilizam a versão Peshitta em Malaiala.

2. A Bíblia Aramaica perdida dos cristãos sírios de Kerala
O novo filme de Mel Gibson, “A Paixão de Cristo”, filmado inteiramente em aramaico [a língua falada por YaohuShua] e o latim, acabou por se revelar um grande sucesso de bilheteria. Com isso, espera-se que haverá um interesse renovado na agonizante língua do aramaico! Pode ser desconhecido para muitos que Kerala é um dos poucos lugares do mundo, onde, ainda hoje, o siríaco (um dialeto do aramaico) ainda é utilizado nos rituais da Igreja Sírio-Malabar local, reputadamente estabelecidos por Mar Thoma (Apóstolo Tomé), em 52 EC.

De fato, as universidades de Kerala oferecem cursos em siríaco/aramaico! Neste contexto, a história da ‘Bíblia aramaica perdida’ no século 16 em Kerala e como ela sobreviveu por séculos de ‘ocultação’ durante a era Portuguesa do Cristianismo na Índia é muito interessante.

Os exemplares da Bíblia, com exceção dos pergaminhos do Mar Morto, são o Codex Vaticanus na Biblioteca do Vaticano e do Codex Sinaiticus no Museu Britânico. Mas a Igreja Anglicana obteve no século 19 as cópias da Bíblia aramaica de Kerala, que se supõe serem tão antigas quanto as cópias no Vaticano e em Londres. Estes tesouros nacionais indianos estão agora na Universidade de Cambridge, no Reino Unido.

A Bíblia era originalmente em aramaico, hebraico, e no início do quinto século EC, São Jerônimo a traduziu totalmente para o latim. Embora esta versão da Bíblia, conhecida como Bíblia Vulgata, seja a principal versão majoritária utilizada pela Igreja Católica Romana, existe outra versão guardada por um ramo do Cristianismo que tinha se estabelecido em Antioquia, na Síria. Sua versão da Bíblia supõe-se ter sido levada a Malabar, na Índia, com o Cristianismo, remontando ao primeiro século EC, após a chegada de Mar Thoma (São Tomé), um dos doze apóstolos de YahuShua (J-sus). Os arcebispos da Igreja Malabar tinham sido nomeados pelo Patriarca (chefe da Igreja Ortodoxa Oriental) de Antioquia e os sacramentos siríaco-cristãos de Malabar formam uma das mais antigas liturgias no mundo. A versão síríaca da Bíblia difere da versão católica romana e é considerada a Bíblia original, porque foi trazida para a Índia antes de 325 EC, o ano em que o Concílio Cristão de Niceia, decidiu codificar a Bíblia de acordo com a versão da Igreja Católica Apostólica Romana.

A comunidade cristã indiana em Malabar, no entanto, continuou a seguir a versão siríaca. Em 1498, os portugueses chegaram à Índia, trazendo com eles os princípios da Igreja Católica Romana. Mesmo tendo ficado felizes por encontrar uma comunidade cristã nativa em Malabar, os portugueses estavam determinados a eliminar a influência do Patriarca de Antioquia da Igreja Indiana e pretendiam que os cristãos indianos transferissem sua aliança para o Papa, em Roma. Isto provocou conflitos frequentes entre os portugueses e a comunidade cristã indiana em Malabar. Finalmente, em 1599 EC, o Arcebispo Menezes de Goa, como o representante do Papa na Índia, decidiu que a principal causa da obstinação dos cristãos indianos era a sua interpretação da Bíblia, com suas diferenças em relação à versão católica romana. Então ele decidiu que a “Bíblia siríaco-aramaica” deveria ser destruída.
Empregando métodos de intimidação e bajulação, com manifestações de poder armado, ele levou o clero sírio cristão da Índia a trazer toda a sua literatura teológica para Uday-Amperor (conhecida pelos portugueses como Diamper) em Malabar. Lá ele convocou um Sínodo, cuja finalidade foi a de eliminar “erros” da Bíblia Siríaca. Neste Sínodo, que durou uma semana, todos os manuscritos sírio-aramaicos, que não concordavam com a versão católica romana da Bíblia foram queimados, juntamente com outros documentos, que teriam sustentado os cristãos sírios em suas crenças. Em uma tacada, os portugueses eliminaram todos os manuscritos e documentos relacionados com o Cristianismo Siríaco Indiano antes de 1599 EC. Além disso, a biblioteca completa do arcebispo sírio em Angamale foi destruída. Estes atos de destruição literária tem sido considerados pelos historiadores como vandalismo, comparável à queima da Grande Biblioteca de Alexandria pelo califa Omar, em 643 EC.

O clero siríaco não tinha suspeitado de tais intenções ímpias dos portugueses, e era tarde demais para seus líderes, chocados, salvarem algum dos livros teológicos. Mas, providencialmente, o comunicado do Arcebispo Português de trazer volumes teológicos a Uday-Amperor, não tinha atingido uma das igrejas remotas da montanha do centro de Malabar, e uma cópia da versão siríaca da Bíblia escapou da destruição! Mais tarde, esta cópia passou a ser o mais preciso volume da Igreja Síria na Índia e um véu de segredo rodeou esta Bíblia, que estava “perdida”, seu paradeiro era conhecido apenas de muito poucos nos escalões superiores da Igreja Síria.

Dois séculos depois, um missionário britânico chamado Dr. Claude Buchanan veio a Malabar e estava interessado na história dos cristãos sírios dos quais ele fez muitos amigos neste lugar. Ele também conseguiu ganhar o coração de Mar Dionysius, o chefe da Igreja Cristã Síria. Em 1807, Mar Dionysius mostrou-lhe a ‘Bíblia Perdida’. Citando o Dr. Buchanan, “O volume continha o Antigo e o Novo Testamento em relevo forte velino em grandes fólios, com três colunas em cada página e foi escrito com bela precisão. Os caracteres eram de Siríaco Estrângela e as palavras de cada livro eram numeradas. Mas o volume tinha sofrido o prejuízo do tempo e da negligência. Em algumas páginas, a tinta foi totalmente apagada da página, deixando o papel em sua brancura natural, mas, em geral, as letras podem ser claramente identificáveis pela pressão da caneta usada pelo copista ou pela corrosão parcial da tinta”.

O Dr. Buchanan discutiu com o Arcebispo sobre a frágil condição do volume e disse-lhe que, no caso de o livro ser entregue a ele, ele o imprimiria e, assim, estaria preservado para a posteridade. Embora tenha sido uma decisão muito difícil para o Arcebispo, pois o volume havia sido conservado por mais de mil anos, ele sabia que os ingleses estavam se tornando rapidamente os comandantes da Índia e que eles, em comparação com os portugueses, eram mais confiáveis, quando tratavam com outras convicções religiosas. Mais importante ainda, o Arcebispo estava inseguro quanto à forma de quantos anos mais a Igreja Síria seria capaz de preservar a ‘Bíblia Perdida’. Apenas uma década antes, a destruição de igrejas indianas pelo sultão Tipu tinha apagado muitos marcos históricos e até mesmo a famosa Missão em Verapoly havia perdido todos os seus manuscritos, assim como o barco que transportava os tesouros restantes afundou em águas profundas. Assim, o Arcebispo considerava que, uma vez impressa, esta antiga versão estaria segura para sempre. Então, ele deu o volume dos manuscritos ao Dr. Buchanan.

Dr. Buchanan, ao voltar, doou estes volumes de 1000 anos de idade e muitos outros manuscritos siríacos à Universidade de Cambridge, onde eles ainda estão preservados na Biblioteca Universitária. Em 1815, esta antiga Bíblia foi impressa pela British and Foreign Bible Society (Sociedade Bíblica Britânica e Estrangeira). Teólogos cristãos observaram, para sua agradável surpresa, que esta versão siríaca era livre de muitas das “inserções posteriores” que predominam na Bíblia moderna e, portanto, provou-se ser um volume de referência valiosa.

Para a Índia, é uma questão de grande orgulho que este país, cujas principais religiões incluem o Hinduísmo, o Islamismo, o Cristianismo, o Budismo, Jainismo e o Sikhismo, e o último refúgio do Zoroastrismo e da fé judaica na Ásia, tenha sido também o país onde tais cópias raras da Bíblia foram preservadas com êxito ao longo de séculos, até mesmo antes da Europa aceitar o Cristianismo.

Referências:
[1] “The lost Aramaic Bible of Syrian Christians of Kerala” é uma reprodução do artigo de KRN Swamy, colunista sobre patrimônio cultural, no Deccan Herald, datado de 11 abril de 2004.

Fonte: Extraído da homepage Nasrani Syrian Christians Network com tradução de Allan G. Araujo.